Leopoldo Chiapetti tem causa da morte corrigida após 60 anos: “Hoje, meu pai é honrado com a verdade”

Família retira nova certidão de óbito que reconhece a tortura como causa da morte de agricultor perseguido pela ditadura militar
Na manhã de sexta-feira (11), no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, em Erechim, Leda Chiapetti retirou a certidão de óbito atualizada de seu pai, Leopoldo Chiapetti, falecido em 1965. Acompanhada de seus sobrinhos Orlei, Dionei Paulo, Alexandra e Márcia Chiapetti, ela recebeu o documento que, após 60 anos, reconhece oficialmente a verdadeira causa da morte: tortura e violência de Estado durante a ditadura militar brasileira.
Leda, natural de Mariano Moro (RS) e atualmente residente em Francisco Beltrão (PR), fez questão de se deslocar até Erechim para ter em mãos a certidão que representa um passo importante na reparação histórica da família.
Uma morte silenciada por décadas
Leopoldo Chiapetti, agricultor, líder comunitário e ex-subprefeito do distrito de Mariano Moro, foi preso no dia 30 de abril de 1964 sob acusação de integrar o Grupo dos Onze, organização política de base ligada ao ex-governador Leonel Brizola. Detido em Severiano de Almeida e depois transferido para o Presídio Regional de Erechim, foi submetido a intensas sessões de tortura física e psicológica, conta a família.
“Ele foi perfurado. Jogaram o corpo dele dentro de um tacho de água — congelado. E depois... mais coisas aconteceram, mas eu nem gosto de falar. Foi por isso que ele morreu”, relatou a filha Leda.
Mesmo internado sob custódia policial no Hospital Santa Terezinha, Leopoldo não resistiu às sequelas. Seu falecimento foi registrado em 21 de maio de 1965, com a causa da morte atribuída, na época, a "choque operatório" — versão que nunca foi aceita pela família.
“Durante anos, esconderam a verdade. Hoje, meu pai é honrado. Finalmente conseguimos o reconhecimento oficial do que realmente aconteceu”, disse Leda.
Um nome, uma história
O caso de Leopoldo Chiapetti foi reconhecido oficialmente pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) em 2004. Desde então, a luta da família seguiu para que a certidão de óbito refletisse a verdade dos fatos.
“A ditadura prendeu, torturou, matou. É preciso falar sobre isso e deixar registrado nos documentos oficiais. A morte de Leopoldo não foi natural. Foi causada pelo Estado brasileiro”, afirmou Guilherme Schons, historiador e pesquisador que auxiliou na documentação do caso.
Para Guilherme, esse reconhecimento formal é apenas uma das muitas camadas de uma trajetória que atravessa a memória, o território e a responsabilidade coletiva. Ele começou a pesquisar sobre Leopoldo ainda no ensino médio, dentro do projeto de iniciação científica “Erechim: Campo Pequeno, Grandes Memórias”. O interesse pela ditadura e seus efeitos o levou até a história do agricultor morto em 1965.
“Foi durante a graduação em História que encontrei, pelas redes sociais, a filha de Leopoldo, a Leda. A partir disso, pensei em formas de reconhecer publicamente as injustiças impostas pelo Estado brasileiro durante a ditadura e propus à vereadora Sandra Picoli que apresentasse um projeto de lei nomeando uma rua de Erechim com o nome dele. O projeto foi aprovado. Mais do que uma homenagem, é um lembrete permanente do que o silêncio oficial tentou apagar”, relembra.
Guilherme também acompanhou a família no momento em que a nova certidão de óbito foi retirada:
“Foi muito significativo estar com eles. O novo documento afirma, com todas as letras, que a morte de Leopoldo foi causada pelo Estado, no contexto da perseguição sistemática a dissidentes políticos. Isso precisa ser dito, repetido, lembrado. Quantas famílias como a de Leopoldo viveram esse luto em silêncio, sem justiça? Relembrar sua trajetória é uma forma de mostrar que a repressão foi nacional, ampla, e que precisa ser enfrentada com verdade.”
A importância do ato também foi ressaltada pela vereadora Sandra Picoli, que, juntamente com Guilherme, se mobilizou para que a memória de Leopoldo Chiapetti fosse preservada. Ela esteve presente no momento da retirada da certidão de óbito atualizada no cartório. “Leda, você não nos conhecia, e mesmo assim confiou. Trouxemos essa história à tona juntos. E, como sempre dizemos: ditadura nunca mais.”
Legado e resistência
Leopoldo era um homem de múltiplas atividades: agricultor, criador de gado, dono de moinho e serraria. Casado com Thereza, deixou onze filhos. Leda tinha apenas 10 anos quando o pai morreu.
Em sessão ordinária especial realizada em 14 de outubro de 2021, foi aprovado o Projeto de Lei Ordinária Legislativo nº 35/2021, de autoria da vereadora Sandra Picoli, que deu nome a uma das ruas do Loteamento Morada do Sol, no bairro Frinape, em homenagem a Leopoldo Chiapetti.
Desde então, o nome do agricultor está gravado no mapa de Erechim, em um gesto simbólico de reconhecimento. Um marco importante, embora ainda tímido diante da dor deixada por uma trajetória marcada pela violência de um período sombrio da história brasileira — uma página que não pode se repetir.
“A gente cresceu ouvindo histórias lindas sobre ele. Não o conheci pessoalmente, mas ouvia meu pai contar... era como se ele ainda estivesse flutuando por aqui”, compartilhou o neto, Orlei Chiapetti.
Com a nova certidão de óbito em mãos, Leda respira aliviada: “Mesmo que não traga todos os detalhes, pelo menos agora diz a verdade. A mentira acabou.”
FONTE: JORNAL BOM DIA
Texto: Gabriela de Freitas
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